Digital feito à mão

Nos anos 1990, pelo menos, para mim, quarta-feira era dia de cinema. Apenas nesse dia, o preço do ingresso era metade do habitual. Fã de cinema e duro como qualquer estudante do ensino médio que preze, eu fazia a festa neste dia. Nessas sessões de quarta-feira, vi vários filmes que se tornariam clássicos: “Forrest Gump”, “O Resgate do Soldado Ryan”, “Pulp Fiction”.  E um, em especial, que me chamou a atenção: “Toy Story”, anunciado como o primeiro longa-metragem de animação feito inteiramente no computador. Depois do meu primeiro encontro com Woody, Buzz Lightyear e sua turma, saí maravilhado. E ainda mais apaixonado pela tecnologia e suas possibilidades. 

MODELO 3D PRÉ-RENDERIZADO PARA O FILME TOY STORY

Mais ou menos por essa época, minha coleção de música era composta quase inteiramente por CDs. Para mim, o futuro tinha a cor de arco-íris, feito da luz refletida vinda dos disquinhos de plástico. Uns anos depois, vieram os arquivos de MP3, e na hora eu me dei conta que logo logo os próprios CDs virariam lixo. Na minha cabeça, a relação entre o mundo físico e o mundo digital era isso: novas formas de se reproduzir, devem passar por cima das antigas. Com o tempo, eu descobri que não era bem assim. 

Ao mesmo tempo em que o mundo digital ganha espaço nas nossas vidas, um sentimento nostálgico nos leva a procurar o mundo físico. Embora toda a música do mundo esteja ao meu alcance nas plataformas de streaming, eu comecei a colecionar discos de acetato (tecnologia anterior ao vinil), que só tocam num gramofone mecânico que comprei numa feira de rua. E muita gente mais jovem, que não chegou a consumir música nem em formato vinil ou CD na adolescência, faz o mesmo. Os LPs, ao contrário dos MP3s, têm mais do que músicas, têm encarte, têm cheiro, têm foto, têm tato, têm arte, ou seja, têm a mão humana. No final, o feito à mão parece ser a única forma de nos reconectar com a nossa essência. Sendo mais direto, é como se a sociedade estivesse explorando uma nova forma do que significa ser humano na era digital. E como apontamos para um futuro onde ampliaremos o espectro de nossa humanidade, é evidente que os artesãos como, marceneiros, carpinteiros ou cozinheiros qualificados, se tornarão uma valiosa mercadoria.

Vem justamente dessa área um ótimo exemplo de como a tecnologia e o artesanato podem e devem conviver harmoniosamente. Alguns dias atrás, conheci o trabalho de um designer australiano  chamado Berto Pandolfo. Ele utiliza na produção de seus móveis um processo que mistura o artesanato old school com peças produzidas por impressoras 3D. Seu conceito é integrar um movimento que a escritora Lucy Johnston batizou de “digital handmade”. Parece contraditório? Num futuro muito próximo, não. Estamos inaugurando um futuro artístico tão digital quanto natural. 

PHOTO BERTO PANDOLFO POR TRÁS DO SEU PROJETO PRT EM CURTA-METRAGEM

E isso não é novo, quer um bom exemplo? Manet, não se tornou menos artista depois que substituiu as tintas feitas de pigmento pelas tintas industrializadas em tubos de alumínio. Pelo contrário, ele rompeu suas fronteiras criativas, pois isso lhe dava a liberdade de pintar em qualquer lugar, abandonando o ateliê e experimentando apenas o cavalete! Essa, aparentemente insignificante, descoberta, na verdade, revolucionou a produção artística. Os processos de produção da tinta a óleo os obrigavam a preparar uma pequena quantidade de certa cor para trabalhar apenas uma área do quadro. Já os tubos fornecerem um material que poderia ser reaberto várias vezes, além de novos pigmentos sintetizados pela indústria.

Manet e seus amigos foram os primeiros a usar esse grande avanço tecnológico: o tubo de alumínio para guardar tintas. Ou seja, o mesmo está acontecendo com as ferramentas da ilustração digital, um tablet e uma caneta digital podem sim coexistir com um pincel e uma a tela. 

Mais de 25 anos depois do lançamento do primeiro “Toy Story”, as animações feitas no computador se tornaram tão comuns que ninguém mais comenta como elas são produzidas, e mesmo depois de todo esse tempo, os filmes da série continuam emocionando novas gerações. Certamente porque, independente da tecnologia colocada, o ingrediente principal do filme, ainda continua sendo o seu roteiro. 

Ou seja, a mão humana.

Crossing Realities

A primeira vez em que ouvi falar em Realidade Virtual, não demorou nada para eu entender do que se tratava. “Ah, é como naqueles jogos do Master System.” Era o comecinho dos anos 1990, “Estamos sendo atacados. Usem como pistolas light phaser, óculos 3D e boa sorte. ” Na próxima cena, os soldados desciam de um helicóptero prontos para o combate, óculos na cara e pistola na mão, exatamente como o guri que aparecia logo em seguida, mas jogando no seu quarto. Uma matemática simples: guri + óculos 3D / pistola = soldado. Aquilo era Realidade Virtual, entendeu? E depois dessa experiência, o pequeno Cassio estava pronto para dar um workshop sobre Realidade Virtual. 

Assault City (Sega Master System) – 1990

Nesse meu workshop, entretanto, claro, faltaria um bocado de informação. Para começar, eu não sabia que o termo havia sido criado não muito antes, em 1987, por um cara chamado Jaron Lanier. Com sua equipe de engenheiros e cientistas, além do termo, Lanier foi o responsável pelo desenvolvimento da tecnologia propriamente dita. Financiada pelo governo dos Estados Unidos, sua pesquisa se mostra muito útil para o Departamento de Defesa Americano e para a NASA. Útil e barato: todos os milhões de dólares investidos revelaram-se uma pechincha quando esses órgãos se deram conta de que não precisavam arriscar vidas e equipamentos reais para treinar soldados, pilotos e astronautas. Uma lição óbvia, mas frequentemente esquecida: dinheiro em pesquisa não é gasto; é investimento. 

Utilizando computação gráfica nunca vista até então, os simuladores imitavam as condições encontradas no campo de batalha e nas missões espaciais. Claro, não demorou para a indústria do entretenimento comprar a ideia e adaptar a tecnologia para a gurizada. Daí para os videogames e o incrível comercial do Master System, foi um pulo. Grande sacada, Stefano Arnhold. Aliás, pesquisem sobre. Brasileiro, o Stefano foi o responsável por trazer essa tecnologia para cá. 

Desde então, as possibilidades da Realidade Virtual se expandiram muito além do uso militar e dos games – que, como sabemos, aprimoraram e continuam usando a tecnologia. Hoje, além de treinar os soldados para batalhas, as forças armadas dos Estados Unidos empregam a Realidade Virtual quando eles voltam para casa, os ajudando a superar os traumas de guerra. E por que não usar a Realidade Virtual para resolver as guerras logo de uma vez, né? Em vez de soldados, os países poderiam convocar os melhores jogadores de videogame. Penso nisso o tempo todo. E, como já sabem, eu não estaria jogando, mas consertando os equipamentos dos soldados.

O futuro previsto por livros, filmes e videogames, a humanidade estará mais do que parcialmente envolvida num ambiente virtual paralelo. A próxima fronteira da Internet é o mundo Phygital, uma nova realidade onde os mundos físico e digital colidem para criar um domínio abrangente de trabalho, diversão, comércio e interação social no ciberespaço.

No clássico “Matrix”, a humanidade se vê reduzida à condição de bateria de energia para as formas de vida mecânicas que assumem o controle do planeta. Para continuar desempenhando essa função sem incomodar as máquinas, humanos têm seus corpos coletivos em animação suspensa, enquanto suas mentes habitam outra realidade, igual à que vivemos: a Matrix. Quantas vezes você já sabe alguém se refere ao que parece ser a vida assim? Eu mesmo, confesso, já falei isso algumas vezes. Quem nunca?  

O fato é que a imersão na Realidade Virtual como mostrada pela ficção não passa disso. A tecnologia nunca nos substituirá. Pelo contrário, ela ajudará a redefinir o papel da humanidade, expandindo o nosso kit criativo de ferramentas. E a pandemia foi um acelerador dessa realidade. Com a distância física não mais limitando nossas esferas sociais, aprendemos como fazer novas conexões por meio de nossas telas, a nos reunir em mundos virtuais compartilhados como o TikTok, o Reels e o Zoom. 

Pode soar como ficção científica, mas os primeiros estágios do Metaverso já chegaram. O Metaverso nada mais é do que a Realidade Virtual com outro nome. Bom, talvez o conceito seja um pouco diferente. Afinal, enquanto na RV você embarca num ambiente virtual, no Metaverso são os elementos virtuais que chegam à nossa realidade. Com o auxílio de óculos especiais – descendentes dos 3D –, visualizaremos ferramentas de trabalho, rotas de trânsito e até o nome daquele colega, que começou agora no escritório. A ajuda que a tecnologia nos dá e nos dará num futuro bem próximo, será ainda mais efetiva e orgânica. 

Mas o Metaverso promete ir além. Como resultado da combinação de VR e AR, tecnologia sensorial, recursos de IoT e software de construção de mundo, nascerá uma nova geração de criadores, que usará a tecnologia para construir o futuro da arte, do comércio e da própria realidade. E, sim, vai se aproximar do conceito ao qual fomos familiarizados pela ficção científica, como escreveu o jornalista Kevin Kelly – com quem tive o orgulho de co-apresentar um workshop na ZENVIA -, num artigo intitulado “Welcome to the Mirrorworld” (“Bem-vindo ao Mundo do Espelho”) publicado pela Wired, onde a realidade aumentada vai ser a base de uma nova plataforma em que tudo o que você conhece terá um correspondente: sua casa, seu escritório, seu país e até sua vida. Sim, tipo o Second Life, mas além.  

Imagem de Kevin Kelly – Illustrated by artist: Drew Pearce (2021)

Metaverso é mais um termo que veio da ficção científica. Aparece pela primeira vez em “Nevasca”, livro publicado por Neal Stephenson em 1992, no tempo em que ouvi falar de Realidade Virtual pela primeira vez. Na história, o protagonista Hiro transita entre dois mundos, o físico e o virtual. Num deles, é um entregador de pizza, no outro um samurai. Em ambos, é um herói. Lembrou do Neo de “Matrix”? Claro, esta foi uma das fontes de inspiração do filme.

Metaverso, Matrix, Realidade Virtual. Escolha o nome que mais lhe agradar. O que todas essas ferramentas têm em comum, é que elas estão nivelando a criatividade como um todo, redefinindo o papel do criador e descentralizando a inspiração criativa. Com a natureza humana agora hiperconectada, temos acessos a diferentes mundos experimentais, temos a liberdade de expressar diferentes identidades online e a capacidade de nos conectar e realizar projetos colaborativos em toda e qualquer parte do planeta. 

E como uma forma de recompensa por todos esses aprimoramentos e glórias tecnológicas, nós, humanos, teremos a chance de descansar. Teremos tempo para buscar e descobrir um novo equilíbrio, nos reconectar com a natureza de nossa humanidade. Vamos vivenciar um crescente interesse em direção à valorização da sabedoria tradicional. Veremos emergir métodos de cura antigos, como orientações xamânicas, medicamentos intuitivos, etnobotânica ou medicina baseada em plantas. Reaprender a pensar por meio de nossos sentidos é essencial nesse estágio de aperfeiçoamento da humanidade, o meio para atingirmos o equilíbrio entre a revolução tecnológica e a evolução humana. 

Ao contrário dos filmes de ficção, que colocam máquinas e humanos como rivais, é através da tecnologia que teremos a chance de dobrar a nossa capacidade de humanidade.

Inteligência Artificial, você e “Ela”

Hoje, ser nerd é legal, é bem visto. Pessoas que curtem tecnologia, games, quadrinhos e filmes de ficção científica fazem sucesso. Se assumir nerd conta pontos no LinkedIn, no Instagram, no Twitter e até mesmo no Tinder. Mas nem sempre foi assim. Quando eu era criança, no começo dos longínquos anos 1990, não existia essa história de “orgulho nerd”. Como nos filmes da Sessão da Tarde da época, os nerds eram alvo de zoação, na escola e onde mais fosse. Quem era nerd não ficava falando por aí: era nerd porque não conseguia ser de outro jeito. Era o meu caso. Como diriam os hipsters americanos, “I was nerd before it was cool”. Bem before.

Como qualquer nerd que se preze, eu adorava games. Mas a minha relação com eles era mais profunda, em todos os sentidos. Eu queria ver como os games eram por dentro, queria entender como funcionavam. Movido pela curiosidade, eu aprendi a hackear os games de computador debugando o software direto em linguagem de máquina e fazendo contas em hexadecimal. Não é exagero dizer que eu me divertia mais assim do que jogando.

Photo: Cena do filme – Jogador Número 1 (2018) by Steven Spielberg

A Inteligência Artificial – me desculpe a obviedade – tem esse nome porque é fabricada. É feita em laboratórios, é o Metaverso da Inteligência Natural à sua imagem e semelhança. A capacidade de analisar, de planejar, de prever, de sentir e de sonhar é o que melhor nos define como humanos. E o mais mágico de tudo isso, são as infinitas combinações que compõem cada um dos 7 bilhões de humanos do planeta. Essa característica é o que a Inteligência Artificial busca e aprimora a cada dia, adaptando-se a nós conforme a usamos. E como num oito sem fim, à medida que a humanidade amadurece em sua maturidade tecnológica, deixamos a infância de uma era para trás e mergulhamos em um novo mar de profundezas digitais.

Como humanos, devemos abraçar (ou dar braçadas) em cada nova onda. Vai fundo, nossos gadgets nos conhecem tão bem, não devemos nos intimidar com eles. É como estar numa roda de amigos. Nessa nova era, atravessamos a fronteira da Internet das Coisas para o Reino da Internet de Todas as Coisas, onde a inteligência digital é perfeitamente integrada em a tudo que nos cerca, das nossas paredes de casa às nossas reuniões, das aulas de ioga aos protestos políticos, das festas de família aos funerais, especialmente em tempos de distanciamento social.

Só é importante ter em mente uma coisa: a Inteligência Artificial modifica nossa relação e comunicação com o mundo e com as pessoas, mas não as substitui. O mesmo aplicativo que te indica ótimos filmes nunca vai ser a melhor companhia para assisti-los numa sexta-feira à noite. Como diria um artista japonês que agora eu não me lembro o nome: “o ser humano sempre irá precisar de algo para tocar”.

Photo: Exposição “Metaverso”- Farol Santander. Com curadoria de Antonio Curti. A mostra reúne obras como Bijari, VIGAS, SALA 28, AYA Studio, Bloco e Wesley Lee.

Falando em filme, já viu “Ela”? O longa do Spike Jonze fala exatamente isso. Joaquin Phoenix se apaixona por um aplicativo que simula uma namorada – interpretada pela voz da Scarlett Johansson, que nem precisa aparecer na tela para mostrar seu talento. Conforme o programa vai sendo usado, como toda Inteligência Artificial, a namorada virtual vai se aproximando dos sonhos do personagem de Phoenix. “Ela” se passa num futuro não muito distante, muito parecido com o nosso presente, em que as pessoas se distanciaram uma das outras, trocando-as por experiências como a vivida pelo protagonista.

A mensagem final do filme é clara: as possibilidades da Inteligência Artificial só serão infinitas se as capacidades da Inteligência Natural também forem.